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segunda-feira, 8 de junho de 2009

Cenas que me alagam

Há cenas que me alagam. Vou citar só uma. Basta. Alguém correndo atrás de um veículo. Um veículo. Qualquer veículo: bicicleta, carro, avião, trem, fusca. Por qualquer motivo. Qualquer um. Digo: ver alguém, velho, goleiro reserva, grávida, caixa do Banco do Brasil, o floricultor do Humaitá, correndo atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão, me faz chorar como o menino acertado no saco – ninguém chora com a franqueza e com a urgência do menino acertado no saco.
Dói-me pontadas quando desistem, quando aqueles que correm atrás de um veículo, por algum motivo - tombo, cansaço - desistem e estancam. Quando consigo me antecipar, fecho os olhos. E imagino. Essa é pra mim a gravura da eternidade: um sujeito qualquer correndo desesperadamente atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão. Se não fecho os olhos, vem o pior: aí, sim, transbordo como um Amazonas caudaloso, infrene. Encarar o olhar infantil daqueles que desistem de correr atrás de um veículo tem a mesma angústia de velar a mãe morta. Ah, já ia me esquecendo: só há meninos descalços correndo atrás de um veículo. O velho, o goleiro reserva, a grávida, o caixa do Banco do Brasil, e até o floricultor do Humaitá, se estão correndo atrás de um veículo, tornam-se, no redemunho da disparada, meninos descalços. E, cá entre nós, só há um veículo: o fusca. O trem, a bicicleta, o avião e até o mesmo o carro: tudo isso é fusca.
Repito: essa cena me ensopa. Sim, há muitas outras. Mas essa traz em sua artéria a mais triste das substâncias da despedida. O cinema brasileiro da retomada abusa desta imagem. Só para relacionar três filmes: Central do Brasil, Cidade de Deus, O ano em que meus pais saíram de Férias. E não me cansam! É incrível: quanto mais vejo alguém correndo atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão, mais choro como o menino acertado no saco. Repitam, repitam sempre essa cena! A repetição é arte de bater a carteira dos dias.
Quando vejo alguém correndo para pegar um ônibus, faço questão de não intervir. As vezes resmungam: por que o senhor não parou o veículo? Eu deveria responder, mas prefiro chorar. Pra mim toda a mediocridade do cinema norte-americano – o que faz com que ele não seja um cinema de formação – é a pontualidade do táxi improvável. Fora isso, está perfeito. Mas a exatidão do táxi destronca a libido pela narrativa. Infesta de imbecilidade a cena! Só os imbecis dão sinal para a imensidão, crendo que dela surgirá um táxi. Os outros – a multidão sem bússola - correm atrás do veículo inabordável. O ônibus que se perde: está aí o grande destino de um homem.
Vou dizer mais: o cinema pra mim, em suma, é um menino correndo atrás de uma câmera. E mais: o cinema da retomada aparece, em meu catálogo da história do cinema brasileiro, classificado como cinema da despedida.

Gustavo Saldanha - Cadernos do Humaitá

O autor é bibliotecário, escritor, compositor, diretor, jogador de futebol (ai, Queijinho), modelo e atriz. Atualmente mora no Rio de Janeiro, faz doutorado no IBICT (ai Marlene) e trabalha na Biblioteca Nacional

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