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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Ensaio sobre a rivalidade - exórdio para Uruguai vs Argentina -

Por Gustavo Saldanha

Retirada daqui


Rivalidade é amar mais que o outro. Não há outra definição que se aproxime com maior temperatura da matéria úmida e sincera da avidez alheia. Cuidar com esmero materno da ira que é mais doçura - como no tupi-guarani aprendemos - que a pan-cólera dos tempos sem unidade de medida. A ira que é só doçura.

Limpar o obus todas as manhãs mesmo tendo o inimigo desertado à última baixa: a rivalidade é cuidadosa – e beija ao final para tatuar o peito ao ferro.

Insistimos: rivalidade é amar com mais fúria e furor que o outro. Poucos amam. Pouquíssimos rivalizam. Menos são aqueles sabem viver a postumária: os tempos que sobrevivem à morte do inimigo...

Há pouco, Atlético e Cruzeiro travaram um clássico insuflado pela querela do túnel – uma invenção infantil do presidente do alvinegro, Alexandre Kalil, para ficarmos na rima lúdica que se aproxima da superficialidade do objeto da questão. Há algum problema com o túnel? Não. Mas há rivalidade. Há uma paixão exuberante pelo outro, que fez com que os grandes imortais, por exemplo, desta e daquela equipe, tenham jogado naquela e nesta, como Nelinho e Luisinho.

A segunda maior paixão do atleticano, sabemos desde sempre, é o Cruzeiro. Comemorar a derrota do adversário chega, por vezes, a ser mais caloroso que a própria conquista – vide o delírio coletivo após a final da Libertadores do ano corrente. O inimigo nos alimenta de amor, cada vez mais amor, e sempre mais e mais amor. A relação entre uruguaios e argentinos habita o mesmo bosque de sentimentos enraizados... É comum, pois, tratarmos pelo viés do etnocentrismo a questão da rivalidade – a cultura que se defende contra o ataque de outra e/ou se defende atacando a outra. Não. A rivalidade é, mais – ou muito menos – do que isto, amor ao outro. Amor não! Predileção neurastênica!, nos ensinou Dostoievski. Repetimos: rivalidade é tão somente amar mais que o outro.

O caso de amor entre Maradona e a seleção brasileira de futebol é um modelo. O mito argentino, ainda jovem, viu o Brasil dar espetáculo na copa dos portenhos. Esperou até 1990 para ganhar do Brasil em copas, mas, principalmente, aguardou o momento de comemorar a vitória sobre o Brasil trajando o ensolarado manto do uniforme do escrete de seu amigo inseparável, fraternal, o inimigo amoroso, Careca. Nas recentes eliminatórias para a copa de 2006, quando a seleção brasileira fora enfrentar os argentinos em Buenos Aires, Maradona fez questão de visitar os jogadores na véspera da partida. Queria tocar Ronaldinho Gaúcho, que então encantava os gramados da Catalunha. Queria sentir o inimigo. Deus explica isto, tanto como os almoços e jantares entre Lula e Fernando Henrique Cardoso.

A metafísica do inimigo é a física popular dos que se desejam com o mel alcoólico da ira recíproca. Isto demonstraram os principais tratados da inimizade que se quer nos braços de seu suor: Victor Hugo e Os Miseráveis, Garcia Márquez e Cem Anos de Solidão, e o insuperável Memórias do Subsolo, de Dostoievski. Entender as formas de relacionamento entre o uruguaio e o argentino, no drama da bola, é perceber: a rivalidade é fraterna; mais que isto, a rivalidade copula e gera. Não, não falo de Evita, de Heleno de Freitas, de outras manifestações das alcovas proibidas. O bordão “um inimigo não existe sem outro” – o Atlético não exige sem o Cruzeiro, etc... – nada mais é que uma proposição verdadeira em sua lógica clássica; não há uruguaios sem argentinos, não há argentinos sem uruguaios... Há um outro sentimento? Talvez. Não o conhecemos. Os rivais se beijam com a paixão dos suicidas, pois se matariam de amor nos braços felizes de seu inimigo.

O Uruguai é um capítulo à parte na história do futebol. É responsável pela maior derrota deste esporte. Repito: responsável pela maior derrota. Por que não "responsável pela maior vitória?" Porque ninguém, como os uruguaios, souberam dedicar a vida à postumária. Onze contra o continente: assim deve iniciar qualquer narrativa sobre a Copa de 1950. Quando o Brasil chegar à final da copa do mundo de 2014, no Maracanã, não estará retornando a um pesadelo, mas, sim, a uma amputação. Os jornais da época, falsos e falsários, noticiam alguns enfartos e outros suicídios na tarde do maracanazo. Mentira! Os jornais só revelam imagos, não sabem nada do estado intermediário que macula a aventura coxa de nossas asas nas vidas que seguimos a morrer. Os jornais não denunciam todos aqueles que não morreram, que não foram enterrados, mas ficaram ali, eternamente ali, obumbrados, decepados pela consciência, partidos ao meio na flor do grito, encarando o monstro Obdulio Varela olhando nos olhos de Ghigia, a gritar para o companheiro que recebera a pouco o seu passe perfeito: Fue gol, Perrito, fue gol!!!

Diz a lenda – ela, a lenda, mais bela e verdadeira que a história e que o jornalismo -, que Obulio, El negro jefe, o capitão da celeste olímpica, saiu após o jogo para tomar cerveja em um bar no Rio de Janeiro. Alguns torcedores se aproximaram para insultá-lo, agredi-lo, lincha-lo. Mas, diante do monstro, diante do rival, o inimigo ainda quente de sua ira fabulosa, abraçaram o peito imortal e choraram. Em entrevista posterior, Varela diria que ali, e apenas ali, se dava conta do tamanho do massacre, o monumento à rivalidade que havia fundado no mundo.

A celeste em campo, parada, aguardando o juiz apitar o início de qualquer partida, é, por si só, um réquiem ao brasileiro.

Ainda há uruguaios nas imediações do Maracanã, sessenta anos depois, ajudando brasileiros a encontrar suas casas, suas famílias, seu destino. É a postumária... O luto hediondo que respeita como nenhum busto imóvel tributado à ética... O uruguaio ficou tão preocupado com trauma causado em seu inimigo que abandonou por tempo indeterminado o futebol para dar colo ao brasileiro. “Isto é apenas um jogo” – poderia ser esta a grande mensagem do povo uruguaio no século XX. É apenas um jogo, mas nós dele faremos a vida.

Os uruguaios inventaram a rivalidade na história do futebol! Primeiro, contra a Argentina. Por isto, esta é A rivalidade: eterna, imaculada, inconteste. O Brasil veio muito depois. Dois países separados por uma corredeira caudalosa... Um rio que atravessa dois povos... tudo leva, menos o desejo de corta-lo para combater o lado oposto. O sangue dos rivais platinos é a lareira viva das barras gélidas do continente americano.

A rivalidade tem a cor e as tonalidades do firmamento, que vão do cerúleo ao carvão, passando necessariamente pelo arrebol do diabo.

Maradona é, para muitos, maior que Pelé, não por seu futebol. Maradona é mais dado à rivalidade. Maradona amou mais em campo que Pelé, ainda que este tenha suado um coração. E ainda ama, o craque portenho. Assume, sem condições físicas, emocionais e outras tantas ausências, a seleção de seu país, correndo o risco - ainda que bastante hipotético - de sujar o nome tecido em mito enquanto jogador. Não importa. Entrar em campo para enfrentar o Uruguai, vale a pena, vale outra vida. É a rivalidade que manda – e cobra o peito como o agiota do Juízo.

É provável que esta noite não veremos futebol. Veremos apenas algo chamado rivalidade, um conceito fundamentalmente uruguaio, divulgado no mundo principalmente pela Argentina - Inglaterra e Brasil que o digam. Em outras palavras, hoje é dia dos Rivais se amarem.

Rivalidade é fazer do massacre a lírica. O rival não vence, atropela. Quedo e quedo, pisa o adversário até o choro das pitangas. E depois abraça - quando sangue e suor parecem fluir direto do coração.

Hoje é dia de beijos... Salve salve Augusto, outro mestre da metafísica da inimizade... “o beijo, amigo, é a véspera do escarro/a mão que afaga é a mesma que apedreja/se a alguém causa inda pena a tua chaga/apedreja esta mão vil que te afaga/escarra nesta boca que te beija”...

Os platinos beijam. Os platinos escarram. E isto é amor.
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Gustavo Saldanha

14 de outubro de 2009

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