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terça-feira, 30 de junho de 2009

Michael Jackson

Existem pessoas e histórias que são da ordem do imponderável, do intangível. Basta um olhar, um gesto, uma palavra para nos desconcertar. Agora, que o mundo todo parece estar de luto, este desconcerto me pega de jeito. Tudo por causa de um sujeito classificado como estranho, bizarro, incomum: Michael Jackson. Esqueçamos as idiossincrasias do rapaz, seu gosto pelo exótico, sua conturbada carreira, e nos concentremos em sua genialidade, sua capacidade de emocionar. Este é seu grande legado para o mundo: sua arte, seu talento inigualável, sua obra irretocável - sei que há críticas e críticas a seu trabalho mais recente, mas e daí? Seus primeiros vinte anos de carreira engrandecem toda sua obra.

Sempre digo: a arte, especialmente a música, vai muito além da técnica. Boa música, já dizia Fábio Massari, é aquela que provoca um arrepio na espinha. Um artista deve, antes de tudo, emocionar o público com sua obra. E Michael emocionou o mundo como ninguém. Eu choro, copiosamente, ao ouvir aquele menino cantando "Ben" e "I want to back". Choro. Michael é o cara, o homem gentil - como disse um apresentador americano - que nos faz chorar de emoção. Nos décadas de 1970 e 1980 assombrou o mundo com invenções difíceis de serem superadas. O homem liderou uma "boy band" cujos membros sabiam tocar e cantar, usou efeitos inovadores em seus videoclipes e criou um estilo especial de dançar. Seus três primeiros trabalhos solos, além dos trabalhos com o "Jackson Five", são essenciais para quem gosta de música "pop". São discos que influenciaram gerações de cantores e dançarinos no mundo todo: para o bem ou para o mal.

Esses dias estou triste. Michael se foi. Há muito tempo já estava fora deste mundo. Aliás, acho que nunca foi daqui. Para ele, esse mundo dos homens de carne e osso devia ser muito estranho. Agora imagino que ele está correndo como um garotinho feliz - imagem de uma charge que vi na internet - por um mundo que é só seu! Descanse em paz e muito obrigado Michael!

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Cenas que me alagam

Há cenas que me alagam. Vou citar só uma. Basta. Alguém correndo atrás de um veículo. Um veículo. Qualquer veículo: bicicleta, carro, avião, trem, fusca. Por qualquer motivo. Qualquer um. Digo: ver alguém, velho, goleiro reserva, grávida, caixa do Banco do Brasil, o floricultor do Humaitá, correndo atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão, me faz chorar como o menino acertado no saco – ninguém chora com a franqueza e com a urgência do menino acertado no saco.
Dói-me pontadas quando desistem, quando aqueles que correm atrás de um veículo, por algum motivo - tombo, cansaço - desistem e estancam. Quando consigo me antecipar, fecho os olhos. E imagino. Essa é pra mim a gravura da eternidade: um sujeito qualquer correndo desesperadamente atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão. Se não fecho os olhos, vem o pior: aí, sim, transbordo como um Amazonas caudaloso, infrene. Encarar o olhar infantil daqueles que desistem de correr atrás de um veículo tem a mesma angústia de velar a mãe morta. Ah, já ia me esquecendo: só há meninos descalços correndo atrás de um veículo. O velho, o goleiro reserva, a grávida, o caixa do Banco do Brasil, e até o floricultor do Humaitá, se estão correndo atrás de um veículo, tornam-se, no redemunho da disparada, meninos descalços. E, cá entre nós, só há um veículo: o fusca. O trem, a bicicleta, o avião e até o mesmo o carro: tudo isso é fusca.
Repito: essa cena me ensopa. Sim, há muitas outras. Mas essa traz em sua artéria a mais triste das substâncias da despedida. O cinema brasileiro da retomada abusa desta imagem. Só para relacionar três filmes: Central do Brasil, Cidade de Deus, O ano em que meus pais saíram de Férias. E não me cansam! É incrível: quanto mais vejo alguém correndo atrás de um veículo que acelera rumo a imensidão, mais choro como o menino acertado no saco. Repitam, repitam sempre essa cena! A repetição é arte de bater a carteira dos dias.
Quando vejo alguém correndo para pegar um ônibus, faço questão de não intervir. As vezes resmungam: por que o senhor não parou o veículo? Eu deveria responder, mas prefiro chorar. Pra mim toda a mediocridade do cinema norte-americano – o que faz com que ele não seja um cinema de formação – é a pontualidade do táxi improvável. Fora isso, está perfeito. Mas a exatidão do táxi destronca a libido pela narrativa. Infesta de imbecilidade a cena! Só os imbecis dão sinal para a imensidão, crendo que dela surgirá um táxi. Os outros – a multidão sem bússola - correm atrás do veículo inabordável. O ônibus que se perde: está aí o grande destino de um homem.
Vou dizer mais: o cinema pra mim, em suma, é um menino correndo atrás de uma câmera. E mais: o cinema da retomada aparece, em meu catálogo da história do cinema brasileiro, classificado como cinema da despedida.

Gustavo Saldanha - Cadernos do Humaitá

O autor é bibliotecário, escritor, compositor, diretor, jogador de futebol (ai, Queijinho), modelo e atriz. Atualmente mora no Rio de Janeiro, faz doutorado no IBICT (ai Marlene) e trabalha na Biblioteca Nacional